75% das doenças infecciosas emergentes que afetam o homem vieram de animais, diz brasileira que estuda relação entre epidemias e desmatamento das florestas
Mariana Vale, da UFRJ, integra grupo internacional que investiga a relação entre meio ambiente e emergência de novos vírus entre as populações, como o novo coronavírus. Vista aérea de área queimada na Amazônia, perto de Apuí, no Amazonas, no dia 11 de agosto. Ueslei Marcelino/Reuters Os principais vírus mortais que circulam entre as populações atualmente vieram de animais, alerta a bióloga Mariana Vale, do departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “75% das doenças infecciosas emergentes que afetam o homem vieram de animais, geralmente mamíferos, sejam domésticos ou silvestres. É o caso do sarampo, caxumba, da malária, HIV (Aids) e Ebola e, mais recentemente, a Covid-19”, explica Vale. A brasileira integra um grupo internacional de cientistas que veem alertando para a relação entre desmatamento das florestas e emergências de novas infecções transmitidas por animais que moram nestes biomas devastados. Ela explica que é comum ver epidemias começarem com transmissões vindas principalmente dos morcegos, por exemplo. "A Amazônia tem uma enorme biodiversidade e, portanto, um número gigantesco de potenciais hospedeiros. A floresta tem, por exemplo, a maior riqueza de morcegos do planeta, e morcegos hospedam muitos vírus com potencial patogênico que podem transbordar para os humanos", relaciona Vale. O biólogo Lee Hannah, pesquisador do Departamento de Mudanças Climáticas da Universidade da Califórnia e um dos que integram o grupo com Vale, explica que o processo em que um vírus passa dos animais para as pessoas é chamado de transbordamento e apenas acontece em "bordas" de florestas. "O transbordamento acontece quando as pessoas estão em contato direto com os animais. Esse tipo de contato acontece na borda da floresta. Portanto, à medida que destruímos a floresta e criamos mais bordas, aumentamos a oportunidade de humanos e animais interagirem e os vírus passarem da natureza selvagem para as pessoas", explica Hannah. Em julho, Vale, Hannah e mais 15 cientistas de várias universidades publicaram um estudo na revista internacional Science alertando para uma região do mundo com potencial para ser palco de uma próxima pandemia: países com florestas tropicais que enfrentam intenso desmatamento, como a Amazônia brasileira. O estudo entende como desmatamento intenso áreas florestais que já perderam mais de 25% da sua cobertura vegetal em atividades provocadas pelo homem. "As bordas das florestas tropicais são importantes plataformas de transbordamento de novos vírus para os humanos. Elas surgem à medida que se constroem estradas ou desmatam as florestas para a extração de madeira e atividade agrícola", afirma o estudo, que também destaca campos de mineração, assentamentos, expansão de centros urbanos em direção à floresta e a pecuária como as principais atividades responsáveis pela exposição dos humanos aos vírus existentes na natureza. O ecologista britânico Andrew Dobson, da Universidade de Princeton, que também assina o artigo, aponta que a conclusão é a de que acabar com o desmatamento, principalmente em florestas tropicais - como a Amazônia e a Mata Atlântica, que abrigam cerca de 50% dos animais terrestres e, portanto, muitos vírus - é jeito mais seguro dos governos prevenirem novas epidemias. "Já vemos ligações muito fortes entre o desmatamento na Amazônia e doenças transmitidas por vetores vindos da floresta, como malária, dengue e doença de Chagas. Estes são apenas alguns exemplos, já que existem muitos vírus desconhecidos que vivem em macacos, morcegos e roedores na região amazônica", afirma Dobson. Os sinais que indicam nova alta da dengue no Brasil em 2020 Mosquito Aedes aegypti é responsável pela transmissão de dengue, zika e chikungunya AP Photo/Felipe Dana, File Na contramão desta recomendação, contudo, as queimadas e os desmatamentos no Brasil em 2020 estão alcançando recordes de destruição. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, até 31 de agosto, somando Amazônia e Pantanal, o Brasil perdeu mais de 53 mil km² de mata nativa devido às queimadas, o equivalente a 34 cidades do tamanho de São Paulo. "É apenas uma questão de tempo até que um destes vírus desconhecidos transborde para a população humana e cause uma nova doença. Muito provavelmente, será identificado erroneamente como malária, gripe ou dengue, até que se estabeleça um diagnóstico, poderá causar enormes problemas, a exemplo de como aconteceu com o Zika vírus no Brasil", afirma o britânico. Pantanal teve 14% do bioma queimado apenas em setembro e área devastada já é recorde histórico, diz Inpe Queimadas no Amazonas em 2020 registram maior número da história Mundo já enfrenta nova epidemia a cada cinco anos A ciência ainda não é capaz de afirmar com precisão quantos vírus existem na natureza selvagem com potencial de causar novas epidemias, a exemplo do Sars-Cov-2, o vírus por trás da Covid-19. Mas segundo estimativa da organização internacional EcoHealth Alliance, há, pelo menos, mais de um milhão e meio de vírus no meio ambiente potencialmente mortais desconhecidos. A cada ano, segundo Dobson, cerca de dois destes vírus passam da natureza para os seres humanos, causando novas doenças que poderiam ser evitadas. "Por causa do desmatamento, do tráfico de animais selvagens e etc., sabemos que novos vírus infectam a população humana a uma taxa de 2 novos vírus por ano. Cerca de um em cada dez deles gera epidemias com potencial para se tornarem pandemias. Ou seja, temos uma nova epidemia a cada cinco anos, ou uma nova epidemia a cada novo presidente", compara Dobson. De fato, nos últimos 20 anos, além da atual pandemia de coronavírus, o mundo enfrentou pelo menos quatro outras epidemias, sendo que uma delas evoluiu para pandemia (veja lista abaixo). 2002, Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS): causada por um vírus da família dos coronavírus, o Sars-CoV, a síndrome apareceu entre os humanos no sul da China. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o vírus foi transmitido por civetas. Em menos de um ano, ela se espalhou para outros 30 países e matou cerca de 774 pessoas. 2009, Gripe A H1N1 (Gripe Suína): o vírus foi identificado em humanos pela primeira vez no México. No mesmo ano, a OMS declarou pandemia do H1N1. Mais de 18,6 mil mortes aconteceram em mais de 200 países. Acredita-se que o vírus tenha vindo de suínos. 2014, Ebola: o vírus apareceu pela primeira vez em 1976, em países da África Ocidental. Vários surtos ocorreram até que, entre 2014 e 2016, ocorreu uma epidemia do Ebola na África que matou 11,3 mil pessoas. Este ano, a OMS declarou um novo surto do vírus na região. 2013 e 2016, zika vírus: o zika foi identificado pela primeira vez em 1947, em macacos rhesus da Floresta Zika, na Uganda. Desde então, causou surtos esporádicos até que, em 2013, infectou milhares de pessoas na Polinésia Francesa. Em 2015, chegou ao Brasil transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, que também transmite a dengue e a febre amarela, outras infecções que causam surtos e epidemias anualmente no país. 2019, novo coronavírus: começou como uma epidemia na China. Em 2020, foi declarado pandemia pela OMS. Já alcançou mais de 235 países e matou mais de um milhão de pessoas. Três anos do surto de microcefalia: a dura rotina e os desafios da primeira geração zika O papel dos animais nas epidemias A brasileira Vale explica que, enquanto a floresta e sua biodiversidade é protegida, animais que hospedam muitos vírus nocivos aos humanos, como os morcegos, não representam ameaça aos humanos. "Mas quando há desmatamento, os morcegos podem começar a se alimentar nas proximidades de moradias das pessoas, aumentando a possibilidade de uma transmissão dos vírus para o homem", diz. É o que tem ocorrido nas áreas que enfrentam incêndios florestais no Brasil, por exemplo. Recentemente, correram o mundo fotos de animais silvestres como cobras, macacos jacarés e até onças fugindo das queimadas no Pantanal em direção às cidades. Fotógrafo Araquém Alcântara registra fuga de animais durante as queimadas no Pantanal. Araquém Alcântara/Divulgação Um estudo publicado em agosto na Nature explica melhor o porquê dessa relação: enquanto algumas espécies estão se extinguindo com a ação humana, aquelas que tendem a sobreviver e prosperar - ratos e morcegos, por exemplo - têm maior probabilidade de hospedar patógenos potencialmente perigosos que podem saltar para os humanos. Em relação à família dos coronavírus, a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) tem alertado que o Sars-Cov-2 possivelmente não será o último a infectar as populações de humanos. "Uma série de investigações detalhadas descobriram que o SARS-CoV foi transmitido na China em 2002 e o MERS-CoV de camelos dromedários para humanos na Arábia Saudita em 2012. Vários coronavírus conhecidos estão circulando em animais que ainda não infectaram humanos. À medida que a vigilância melhora no mundo, é provável que mais coronavírus sejam identificados" - Opas Onde ocorrerá a próxima pandemia Há pelo menos três décadas, o ecologista Stuart Pimm, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, considerado referência mundial na área, alerta sobre a relação entre desmatamento, mudanças climáticas e tráfico de animais silvestres com a emergência de novos vírus com potencial de causar epidemias. Pimm já havia alertado sobre os vírus por trás do Ebola, Mers e Sars, que transbordaram de animais para os humanos nas últimas décadas. Contudo, estudos como os do americano passaram despercebidos nestas décadas até dezembro de 2019, quando o mundo teve a notícia do primeiro infectado por um novo tipo de coronavírus em Wuhan, na China. "Acreditamos que o Sar-Cov-2 possa ter vindo de um morcego", explica Pimm, lembrando que a ciência ainda não conseguiu apontar com exatidão a origem do vírus por trás da Covid-19. Agora, além da busca pela vacina contra a Covid, a ciência se esforça para mapear os riscos em comunidades em todo o mundo e projetar onde a emergência de novas doenças são mais prováveis estão assumindo o papel central. Ainda não é possível prever quando e onde ocorrerá uma próxima pandemia, segundo a brasileira Vale, mas as apostas têm sido áreas desmatadas de florestas tropicais. "Não é possível prever com precisão, mas existem mapeamentos das áreas de risco para a emergência de novas doenças infecciosas. Essas áreas são, em geral, associadas com florestas tropicais onde há grande riqueza de possíveis hospedeiros animais. O risco aumenta com o tamanho da população humana e a com a taxa de desmatamento nessas áreas, que aumenta a taxa de contato entre pessoas e animais silvestres", afirma Vale. Vale conta que existe um projeto de pesquisa internacional, o projeto VIROMA, que pretende mapear nos próximos 10 anos 99% de todos os vírus com potencial pandêmico do mundo. O Brasil é um dos principais lugares a ser pesquisado. "Porém, o Brasil é um dos países do mundo com a maior lacuna de conhecimento nesse sentido de mapear os vírus na natureza. Investimentos em pesquisas científicas que identifiquem os vírus associados a nossa rica fauna são uma necessidade urgente quando pensamos em uma futura pandemia", explica Vale. Sem desconsiderar a importância de se preparar para uma próxima pandemia, o biólogo Hannah afirma que é possível evitá-la. Próxima epidemia ‘já está a caminho’, alerta médico sobre desmatamento na Amazônia "Cuidar de nossas florestas é o melhor jeito de minimizar as chances de novas pandemias como a que enfrentamos", aponta Hannah. Aquecimento global Além do desmatamento das florestas, os cientistas alertam que o tráfico de animais selvagens e o aquecimento global também podem estar nos aproximando de uma próxima pandemia. Após um ano coletando amostras de gelo no Polo Norte, a maior expedição científica já realizada na região retornou para a Europa na segunda-feira (12). Além de pesquisarem os efeitos das mudanças climáticas, os cientistas do Instituto Alfred-Wegene, na Alemanha, investigam um fenômeno que tem preocupado epidemiologistas: o reaparecimento de vírus e bactérias retidos nas camadas mais profundas das calotas polares, e que podem emergir à superfície na medida em que com o aquecimento global. Em entrevista à agência RFI, os cientistas lembraram da bactéria de antrax que, há quatro anos, veio à superfície e matou um menino de 12 anos na Sibéria.
Notícia publicada em: G1.globo.com